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As crenças e religiosidade e o dia 3 de maio, o dia da Santa Cruz, o dia dedicado aos pobres.

Cabril, assim como grande parte das aldeias do Barroso, foram durante séculos locais isolados, construídas sobre ermos, praticamente inacessíveis durante o verão e alguns deixavam mesmo de o ser durante os meses de inverno, estes pequenos povoados pouco ou nada alteraram ao longo de centenas de anos, a sua forma de vida e o seu viver, eram povos que viviam em locais inóspitos entre fragas e pedras, encravados nas montanhas entre cursos de água, junto à florestas em zonas de difícil acesso, talvez por esse motivo o comunitário forçado e a entreajuda foi uma forma de ultrapassar todas as dificuldades com que se iam deparando e foi desse modo que conseguiram chegar com alguma vitalidade aos dias de hoje.

Eram povos muito ligados ao sobrenatural, a natureza, viviam em constante promiscuidade com os seus animais, desenvolveram lendas e crenças, criaram mitos e benzeduras, fundiram o passado pagão com o catolicismo, aprenderam as propriedades medicinais das plantas, aprenderam a ver as horas pelo sol, a escutar os sinais da natureza, enfim aprenderam a viver onde era difícil sobreviver, viviam na natureza e dela sabiam tirar o melhor proveito, e a respeita-la, mas sempre com a consciência que Deus tudo perdoava, mas que a natureza era implacável e nada perdoava, eram povos muito religiosos, demasiado religiosos, respeitavam os dias Santos, as trindades, não tinham a quem recorrer, senão a Deus.

Na semana da Páscoa, na quinta feira a partir do meio dia em ponto, se estivessem a podar as tesouras deixavam de cantar, as enxadas deixavam de cortar terra, as gadanhas e foicinhas deixavam de tombar a erva, as vassouras deixavam de varrer, a roupa ficava por lavar, não se podia fazer terra fresca, era assim até ao meio dia da sexta feira santa.

Outro dia muito importante era o 3 de Maio, o dia da santa cruz, que no calendário católico celebra a data da descoberta da Cruz de Cristo, em 326 por Santa Helena e ainda a recuperação da mesma Cruz por Heráclio que a reconquistou aos Persas e a levou as costas para Jerusalém, tendo a entregue ao patriarca Zacarias, no dia 3 de Maio de 630.

Em Cabril a Santa Cruz era o dia dedicado aos pobres aos cabaneiros ,os cruzeiros e as fontes eram ornamentados de ramos verdes e flores silvestres e muito alecrim, em casa nada se podia fazer, não se podia trabalhar com o gado, não se podia por o arado na terra, só se podia trabalhar para os pobres, se bem que não havia gente rica, mas havia sempre a mais remediada, era o dia de ir tirar esterco, lavrar, fazer as bessadas das pessoas que não tinham animais e não tinham como trabalhar as terras, era estritamente proibido trabalhar em casa, tinha que se ir ajudar aqueles que não tinham como fazer o trabalho, e quando alguém não cumpria , havia sempre um fenómeno que acontecia, segundo a linguagem popular, ou era os arados que se partiam, ou os animais que se recusavam a trabalhar, ou então um boi que acabava sempre por se “escanhotar “.

O “ti” João da Ponte conta uma história que um vizinho dele entretanto já falecido, tinha cangado os bois para ir lavrar para um pobre, mas que ao mesmo tempo aproveitou para ir levar para ele um carro de bois carregado com esterco a barcaça, para o passar para a Grova, onde tinha um lameiro, só que ao descarregar o esterco para o barco, o carro de bois virou e foi tudo parar a barragem, e o próprio “ti João que conta :

-“ohh… pá , olha tivemos que tirar os bois com a barca, os bois ainda por cima ficaram presos pela soga, foi o cabo dos trabalhos, eu dei-lhe um grito !!! Ohh home então tu não sabes que é um dia assinalado, olha, ele virou os olhos ao chão, nem uma nem duas, nem me respondeu, sabes é preciso ter respeito, muito respeito “…

Quanto a mim não sei o que pensar…mas que gosto muito de assim viver e desta forma de vida …Gosto.

A chegada da Albufeira de Salamonde em 1953

As alterações da paisagem e a perca de tradições , usos e costumes de um povo e o “ti” Sebastião da Barca

Quando no ano de 1953 a albufeira de Salamonde começou a encher, a baixa de Cabril e a própria freguesia mudou para sempre, a paisagem nunca mais foi a mesma, o modo de vida nas populações alterou para sempre, muito se perdeu, foram tradições, usos e costumes que acabaram, a paisagem nunca mais foi igual, Cabril sofreu como muitas outras terras de Portugal, o poeta e escritor Miguel Torga, um dia disse: “estes tempos de barragens são uma verdadeira nova no mundo, qualquer dia na escola, o mestre olha para o mapa e diz – antes do período albufeirozoico, aqui era o Barroso.”

O povo de Cabril sofreu, viram os seus terrenos e lameiros ficarem submersos pelas águas, assim como os moinhos, lagares do azeite, zonas piscatórias, poços do linho …muito se perdeu.

Ainda a gente desse tempo, gente que se lembra da chegada da albufeira, por isso não me foi difícil (até porque tenho uma enciclopédia viva em casa) guardar e levantar os registos dos grandes poços que existiam no rio, assim como os seus nomes, o mesmo aconteceu em relação aos terrenos e edificações, foi difícil, mas ao mesmo tempo um trabalho de muito prazer, pois guarda muitas memórias que irão ficar salvaguardadas para as gerações futuras de Cabril, neste pequeno texto eu não irei referir tudo pois seria muito extenso e porventura maçador, irei só falar dos mais importantes e não me irei alongar muito ,pois não vou passar do saltadouro que fica logo debaixo de Salamonde .

Irei começar por S. Ane e pelo sítio onde existiam as pondras ou passadeiras, onde ficava o Poço lava pés, assim chamado pois no inverno e quando o rio trazia mais caudal obrigava as pessoas a tirar os socos e as meias de lá de ovelha para efetuar a passagem para a outra margem ,logo a seguir era o Poço do Dornalho que era onde tinha a presa do lagar de azeite e do moinho da casa dos da Ponte, abaixo era a ponte velha e o Poço do Rodelas, era também aqui que ficava o único lugar da Freguesia de Cabril que teve de ser mudado e que só tinha uma casa ,que era a casa dos da Ponte ou dos Alves, que era uma família muito antiga de Cabril, neste lugar da Ponte viviam e paravam também todos os pobres ou cabaneiros, que eram os artesãos da altura e andavam de terra em terra a fazer cestos ,arranjar potes e guarda chuvas, faziam cântaros em folha, vendiam tigelas e malgas…dormiam debaixo das pedras, nos palheiros, alguns dormiam mesmo na corte dos animais, o mais conhecido e que mais tempo foi ficando era o António que era cesteiro, a quem chamavam o António Rodelas, alcunha ganha devido ao Poço, era um dos da volta, como aqui o povo diz, morava no lagar de azeite que também foi mudado para o lugar das Olas, quando o lagar estava a moer ia viver para o moinho da casa da Ponte, no sítio onde está hoje a ponte nova que foi construída em 1952 ficava o Poço dos Burros, e o moinho da casa dos junpires, que se pensa que foi a primeira casa a existir no lugar de Cavalos , logo a seguir vinha o moinho da casa do Adro, depois vinha o Poço da Grova, e que também tinha um moinho que era de vários herdeiros e era o mais bonito, pois era todo feito em pedra até à cobertura, depois era o Poço de Bustelinho, que tinha um lameiro por cima e que também ficou submerso, a seguir eram os poços da barca e dos lagos, e era neste lugar que morava o barqueiro Sebastião uma das grandes figuras de Cabril e a quem a Freguesia ainda não lhe prestou a devida homenagem, era barqueiro, moleiro, agricultor e pescador, era um homem que criou muitos filhos, mas que tinha sempre as portas de casa abertas para matar a fome e a sede a quem passava, foi ele quem encheu os ribeiros da serra com trutas, era um homem de grande humanidade e um protetor da natureza ,também ele sofreu com a chegada da barragem, perdeu casa, terrenos e moinho, depois vinha a cascalheira, onde também existiam umas pondras assim como um caneiro para apanhar peixe e que tinha o pormenor de ser fechado, existia também o Poço dos sapos conchos que era o nome que as pessoas davam aos cágados que eram difíceis de ver e fugidios, a excepção dos dias de sol, o povo dizia que esse Poço não tinha fundo, por isso evitavam ir para lá, por fim existia o saltadouro, que foi onde nas invasões francesas, houve grandes escaramuças e bastantes perdas humanas e que morava o barqueiro de Salamonde, existia também um moinho de duas Mós a moer permanentemente , depois da chegada da barragem essas Mós acabaram por vir para o novo moinho do “ti” Sebastião.

Muito fica ainda por escrever, pois estes povos tem uma história longa e muito rica, em termos de vivências e culturais.